sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

AGONIA EM FRENTE AO GRECO

O Sr. Dias usava dentadura postiça...

O seu fiel Tabú acompanhava-o sempre, parecendo orgulhoso do sorriso luminoso do dono e este da amizade e fidelidade do cão rafeiro que, com ele, partilhava um casebre ali para os lados da Quinta das Flores.

Certa noite, o Tabú fitava apreensivo o seu dono, ao vê-lo, agoniado, em frente ao portão do GRECO, meter os dedos à garganta e provocar um abundante vómito, depois de ter estado numa patuscada no Capim, onde comeu de tudo e em quantidade, bebendo talvez para além da marca.

O cão lambia e saboreava o vomitado, e de súbito abocanhou, sôfrego e apressado, a dentadura do dono que, no meio dos espasmos, se lhe soltara, caindo no chão.

O Sr. Dias ainda tentou arrebatá-la da boca do Tabú, mas este, obedecendo ao seu instinto, rosnou-lhe e engoliu-a.

Com dificuldade em articular as palavras o Sr. Dias berrou-lhe, ameaçou-o, ordenou-lhe que lhe devolvesse os seus dentes. Mas o Tabú, de rabo entre as pernas, parecia querer dizer-lhe que já nada havia a fazer. Já os tinha no estômago...

O dono levou-o para casa e fez-lhe um clister. Era a única forma, expedita, de apressar a saída da dentadura, através do ânus do cão. Era preciso que ele defecasse! E quanto mais depressa melhor!

Pacientemente, sentado, com a cabeça entre as mãos, O Sr. Dias esperou, esperou...

Até que, finalmente, o cão expeliu toda a carga que lhe enchia e magoava os intestinos.

No dia seguinte, o Tabú parecia mais orgulhoso do que nunca, ao olhar o Sr. Dias passear-se pelo Bairro, cumprimentando quem passava e exibindo ostensivamente o seu belo sorriso...

Aquele cão sentia que, agora, também já era um pouco dono de uma parte do seu dono...

Rui Felício

NOTA: O nomes são fictícios. O dono ainda pode estar vivo. O Tabú já não...

7 comentários:

  1. A tua imaginação e a tua habilidade inata para duma ideia construíres uma estória está bem patente neste texto que contém o drama, a alegria de quem vê ultrapassado de forma satisfatória um problema e o compromisso que surge na expressão da brilhante ideia do próprio Tabu já se julgar como parte integrante do seu dono por ter “parido” a dentadura.

    Há uns anos encontrava-me a almoçar num frequentado restaurante da Mealhada e numa das mesas encontrava-se, o Sr. Júlio, conhecido talhante do mercado de Coimbra. A sala estava repleta e de repente surge um grande alarido, o Sr. Júlio tinha espirrado e com o espirro saltou da sua boca a dentadura que rebolou por baixo das mesas. Ele e a família de rabo para o ar bem procuravam a dentadura mas como não aparecesse toda a gente se pôs a olhar para o chão, a placa não aparecia, todos os que estavam na sala interromperam a sua refeição para a procurar, e, quando já se dispunham a dar mais importância ao leitão que ainda estava no prato surge uma rapariga, ainda nova, com um miúdo de dois ou três anos que se encontrava a brincar no chão e que ao ver a placa a passar à sua frente a tomou para si como um novo brinquedo.
    O Sr. Júlio foi à casa de banho e retornou todo ufano e contente sorrindo para os presentes e para a costela que estava ainda no prato aguardando a próxima dentada.

    Abílio

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  2. Também ma apetece contar um episódio caricato,triste e emocionante que se passou durante a minha vida profissional no Hospital Sobral Cid.
    No nosso trabalho de ressocialização com as "doentes crónicas" ( doentes "despejadas" pelas famílias há décadas...)procurando que
    reatassem os ténuos laços com a sua família e casa o que era francamente positivo para elas.
    Então semanalmente acompanhávamos a D.Branca a sua casa onde ela se deliciava a tocar no seu velho piano...Assim foi acontecendo durante algum tempo...A satisfação era enorme e D.Branquinha esperava ansiosamente por aquele dia.
    Ao mesmo tempo estabelecia contactos com os irmãos e sobrinhos e nós,técnicos,evidenciàvamos-lhes quanto aqueles momentos eram importantes.
    A doente há muito tempo que estava desdentada e não tinha prótese porque nunca se adaptou...mas isto não era significativo para ela! O piano sim!
    Eis quando o irmão resolve fazer um acordo(???) com a irmã :
    Trocar o piano (que seria para a filha) por uma dentadura!!!
    Assim o pensou assim o fez!
    Aparece com uma dentadura cuja medida foi calhas e diz " mana,toma estes dentinhos em troca do piano que já levei para minha casa"!!!
    A D.Branquinha não quis voltar à sua casa... e a dentadura ficou dentro da gaveta da mesinha de cabeceira da enfermaria para sempre...
    A insensibilidade e a falta de afecto doeram
    forte a todos nós mas principalmente à nossa Branquinha com os seus 70 anos.

    Olinda

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  3. Dois episódios inesperados aqui trazidos, que me surpreenderam:

    Um, caricato e cómico, contado pelo Abílio.

    Outro, pungente, partilhado pela Olinda, e que nos mostra como os velhos são desprezados a troco de um prato de lentilhas.

    Nunca imaginei, ao escrever a "Agonia", que afinal houvesse tantas histórias com dentaduras postiças..

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  4. Para amenizar, vai mais uma historieta de família...Um tio-avô, com fama de forreta a 150%, lá foi finalmente convencido a colocar uma placa.Parecia mal, no local onde trabalhava, andar sem 'corta-palha'.
    Vieram as férias e, como de costume, lá foi a família para a Figueira; logo no segundo dia, no mergulho matinal, os dentes foram mar adentro.
    Imaginam o drama do tio patinhas? Segundo contava a minha Mãe, ele andou o resto do mês a estudar e vigiar as marés, à espera que o mar lhe devolvesse o que tanto dinheiro lhe custara, para grande divertimento dos filhos e sobrinhos...
    A tua história, Rui, fez-me lembrar a das duas manas solteironas que usavam a dentadura 'à vez'.Após a saída de uma delas, a outra precisou do adereço e foi 'troca directa'.Depois de a colocar, perguntou à mana:"Com que então, pasteis de Belém ao lanche???"

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  5. A Teresa, quando menos se espera, sai-se com cada duas, que até me ia caindo a dentadura de tanto me rir...

    Já agora, que tanto se tem aqui falado de dentaduras postiças ( não sei porquê, mas não gosto da palavra prótese. Faz-me lembrar a perna de pau dos piratas... ), vendo esta pelo mesmo preço que a comprei:

    Em Marrocos, nalgumas cidades, parece que se encontram bancas na rua com dentaduras para venda. São dentaduras retiradas aos cadáveres, visto que a eles já não farão falta.

    Depois, cada interessado experimenta até acertar na medida que lhe convém e regateia o preço com o vendedor.

    É o princípio do pronto a vestir, na sua vertente dentária...

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    Quando escrevi a história do Tabú, sempre pensei que iam pegar no tema do clister. Afinal ficaram-se pela boca...

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  6. O descrito pelo Rui Felício fez-me lembrar Sepúlveda, assim:

    Luís Sepúlveda nasceu em Ovalle, no Chile, em 1949.
    Membro activo da Unidade Popular chilena nos anos setenta, teve de abandonar o país após o golpe militar de Pinochet. Trabalhou e viajou pelo Brasil. Uruguai, Paraguai e Peru.
    Amigo de Chico Mendes, herói da defesa da Amazónia, dedicou-lhe o romance “O Velho que Lia Romances de Amor”, o seu primeiro grande sucesso.
    Uma das personagens desta sua obra é o médico dentista que tem o sugestivo nome de Rubicundo Loachimín, cujos métodos primitivos de tratar dentes não conseguem afugentar-lhe a clientela por falta de alternativa.
    Esta passagem do seu livro, que li já há tempo, é uma maravilha.
    Loachimin, passa a vida a caluniar o governo e as instituições para distrair os doentes dos movimentos das suas terríveis pinças e alicates, insultando-os quando mostram falta de coragem para enfrentar as suas tenazes sem anestesia. Portador duma saca de dentaduras, que sempre traz consigo, vai arrancando dentes a sangue frio por forma a adaptar a boca às dentaduras que transporta.
    Não sei a proveniência das dentaduras mas como diz o Rui, também aqui pertenceriam, talvez, a quem delas já não necessitasse.
    Abílio

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  7. Esta descrição do romance de Sepúlveda é de cabo de esquadra! Se bem percebi, o Rubicundo em vez de adaptar a dentadura à boca, adaptava a boca à dentadura.
    E sem anestesia!
    Mal por mal, prefiro ir a Marrocos...

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